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domingo, 24 de março de 2013

Rio Movediço

É muito comum confundirmos poema e poesia, como se formalmente esta estivesse contida naquele. Em muitos poemas, porém, dificilmente conseguimos vislumbrar algum fazer poético, do mesmo modo que, não raro, nos deliciamos com a poesia presente em textos em prosa. Desnecessário dizer que há poesia para além da linguagem escrita, seja em prosa ou em verso. A poesia simplesmente é, transcende qualquer forma que se lhe queira dar. 
Flávio Corrêa de Mello, em seu Rio Movediço, recém-lançado pela Editora Verve, sabe disso e apresenta um fazer poético indelével. Em seu livro, dividido em três partes, ele mescla versos e prosa, mas em comum há a poesia, que não se dá em "versos sisudos". Como um rio, em constante e ininterrupto movimento, a poética de Flávio caminha para "diversos itinerários", desnudando sujeitos vários, mas que, ainda assim, conformam unidade, a ser decifrada.
"Todos, todas", poema exemplar da primeira parte do livro, intitulada Filigranas, diz:
Não sei para quem escrever,
se para ela, se para você.
mas o que importa!
Pela força, me escrevo.
Me sorrateiro desenho
e desdenho do desafio.
Disso não preciso, mas quero:
as pintas do umbigo
e a sola na ponta do calcanhar
para beijar, lamber, rasgar.
Não seria assim o quanto se paga
para escrever livremente?
Você deitada e o teclado
deslizando as palavras:
pelo, seio, cheiro, sola,
mordidas, rasgos, silvos,
e depois a cozinha, a sala,
a área, o ralo entupido,
e eu vestido de John Holmes,
e você de copo d'água bem gelada.
As flores já estão lá meu amor,
estão na sacada, estão nos sacos
que embrulhei para guardar 
o que é desnecessário:
saber para quem escrever,
não importa, você, ela,
aquele, aquela, somos todos.
Sem saber a quem destinar seu poema, de início, o poeta soluciona o impasse se escrevendo, num entrelaçamento entre vários sujeitos que resulta, ao fim e ao cabo, numa espécie de coletividade singular, afinal, "somos todos". A individualidade e a angústia de quem quer "escrever livremente" dissipam-se e encontram solução na crise identitária comum em nosso tempo, ou, melhor dizendo, na pluralidade de eus que habita cada um de nós. Seria essa profusão de identidades "Memória", primeiro texto em prosa do livro? Em "Memória", "a foice ceifou a conversa", não há mais, portanto, interlocução, retornamos a um único eu que, apesar de individual, evoca um outro. Filigranas parece ser um ótimo título para essa primeira parte do livro, quer pelos sujeitos que se imiscuem, quer pela pouca importância que isso representa, uma vez que é impossível roer "o osso por inteiro".
A segunda parte do livro intitula-se Cidades. Aqui, além do diálogo, dentre outros, com Bandeira, negando-o, ou melhor, "desonomatopeizando-o" ["Saculejo café com pão/ café com pão não! / é pistão, pistão."], há referências, naturalmente, à cidade, onde o poeta era "novamente o estranho, o perplexo, o inadequado, aquele que nunca consegue achar o caminho de volta, o que cruzou a linha". E, mantendo a unidade do livro, percebemos um intercâmbio com a primeira parte. Agora, a poesia de Flávio progride, sem, contudo, abdicar do jogo perpetrado em Filigranas. Da brincadeira entre identidades, a pluralidade do poeta explicita-se, no sentido de que ele quer libertar-se "deste poema que sou hoje." Poeta e poesia se misturam de tal forma que o espelho "não me reflete, reflete apenas deformidades daquilo que os outros imaginam ver, não o que calo no grito e na imagem refletida".
Rio Movediço é a terceira e última parte do livro homônimo. A viagem pela leitura fluida do livro conduz o leitor, mesmo nas águas do rio, "para além [d]o rio." Por um lado, a multiplicidade poética de Flávio aponta para identidades várias, para diversas direções, para uma unidade muito bem construída e sedimentada. Por outro, são as águas do rio que, do mesmo modo que navegam o leitor para o desaguamento, o retém em poças que se formam pelo caminho, prendendo-o "na lama, no lodo úmido." Segue mais um poema do livro, só para dar um gostinho de quero mais.
ÁGUAS TURVAS
O rio dorme e condensa.
Recebe o turvo, sedento,
plasmando em seu leito
o lodo pastoso, a náusea.

Sustenta rangeres, ossos,
tremores, fungos e dores.

Febres agora, no silêncio,
e ainda a selva é desfeita
e ressona tosco em torno
e acima de folhas, algo
com gema de nascedouro,
o ovo e o olho: o mundo.

Nas seivas e nos galhos
o rio sedimenta-se.
Calcário e cascalho
o rio retém o pó.
Tônus, músculo, pelos,
uma poça cresce.
Para finalizar, esta terceira e última parte complementa as duas anteriores, formando um todo indivisível, um todo poético. Podemos interpretar este poema como a interlocução que nasce da poesia de Flávio com seus leitores. Sua poesia, dialeticamente, apesar de estar pronta, só se completa com as leituras diversas e interpretações múltiplas que ela proporciona. Enfim, o percurso do rio é ora lodoso ora límpido, ora caudaloso ora poça, mas é sobretudo poesia. Quem quiser conhecer o blog que o poeta mantém, denotando sua versatilidade textual, basta clicar aqui.

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